Dona Querência era uma senhora de formas arredondas, bastante simpática e dona de uma gargalhada estrondosa, mas apesar disso tinhas profundos olhos negros, mergulhados em uma tristeza assustadora.
Essa simpática mulher ficara viúva muito cedo, tendo que cuidar de seus cinco filhos sozinha. As finanças da família não a preocupavam, mas não era nada fácil ser sozinha, rica e viúva, com filhos para educar em meados do século XIX.
Sua vida corria tranquilamente até o dia em que Inácio, seu primogênito, entra pela cozinha com o jornal em uma das mãos lendo o tal anúncio:
- EXCELENTE ESCRAVO: vende-se crioulo de 22 anos, sem vício e muito fiel, bom e asseado cozinheiro, copeiro, bolieiro. Faz todo serviço de arranjo de casa com presteza, e é o melhor trabalhador de raça que se pode desejar: humilde, obediente e boa figura. Para tratar na ladeira de São Francisco nº 4.
Como tendo sofrido uma punhalada em seu coração Querência ficou estática ao ouvir o endereço de onde era para tratar da compra do tal escravo. Inácio não entendendo nada se assusta com a palidez da mãe e grita pela irmã que estava bordando na sala:
- Margarida… Margarida… Corra que Mamãe está passando mal!
Margarida corre apavorada até a cozinha, onde encontra sua Mãe desfalecida nos braços do irmão.
- Inácio o que aconteceu com nossa Mãe? Ela está morta?
- Claro que não menina. Mamãe está apenas desmaiada, ajude-me.
Aos poucos Dona Querência recobra a consciência e volta a corar as fartas bochechas de um rosa ainda tímido. Abre os olhos e depara-se com o olhar assustado de Inácio, Margarida e Leonel, o caçula da família, que chegara da escola.
- Mamãe o que houve com a senhora? pergunta Leonel.
- Nada meu querido, são coisas da idade. Tive apenas um mal estar, mas já estou me sentindo bem.
Começam os preparativos para o almoço, Margarida ajuda na arrumação da mesa enquanto sua Mãe dá as últimas ordens à escrava. Finalmente chegam Pedro e Miguel. Sentam-se todos, fazem a oração costumeira e servem-se com as delícias postas a mesa.
Mediante tamanha confusão Inácio esquecera-se do anúncio, até que toca no assunto, o que faz com que Querência empalideça novamente. Passado alguns instantes ele insiste dizendo que irá ver o escravo logo após o almoço.
Em um impulso, misto de cólera e desespero, Dona Querência fala quase aos berros:
- Eu o proíbo! Está entendendo Inácio? Eu o proíbo de chegar perto desse negro. Você que não se atreva!
Levantou da mesa em seguida, deixando apenas o silêncio e a troca de olhares entre os filhos, que definitivamente não entenderam nada.
Assim que percebeu a casa tomada pela calma vespertina habitual, Querência saiu do quarto, dirigiu-se para a parte de trás da casa e foi de encontro ao cocheiro:
- Apronte imediatamente a carruagem que nós vamos sair.
Em minutos sairam em disparada da imponente casa, dirigindo-se para a ladeira de São Francisco nº 4.
Chegando a frente da modesta casa, ela desce da carruagem e dá três batidas na porta. Um senhor vem atendê-la e fica atônito ao ver a imagem daquela dama, que há tantos anos não o procurava.
- Como pôde José? Como você tem coragem de colocar seu filho a venda? Você não se recorda em como é terrível ser escravo? Você não se lembra do quanto sofreu antes que meu pai o libertasse? Pelo amor de Deus. Não faça isso. O que você quer? Por que voltou? Não foi o suficiente o que foi dado a você para cuidar de nosso filho?
Antes mesmo que José pudesse dizer qualquer palavra, surge de um canto sombrio da sala um vulto que para ela fora mais assustador do que a imagem de um fantasma. Inácio aproxima-se. Olha em seus olhos com um olhar de ódio. Suspira. E toma coragem para lhe perguntar o que desejava ser um engano.
- Nosso filho? De onde a senhora conhece esse negro? De que filho a senhora está falando? O que está fazendo aqui?
Querência abaixa a cabeça, levanta os olhos, procura desesperadamente por uma ajuda, procura os olhos de José, procura por aquele bebê que vira apenas uma vez.
Eis que surge na sala em meio a esta tempestade, um bonito rapaz negro, corpo atlético, altivo, com lindos olhos. Sim, era ele o filho que lhe fora tirado dos braços ainda no primeiro minuto. Era ele o fruto do grande amor que houvera entre Querência e José, amor este despontado desde a infância, já que José nascera na fazenda dos pais de Querência, e por quase toda sua vida fora escravo daquela família. Mas quando ela contraiu matrimônio com o poderoso Coronel Pacheco, seu pai mandou José como presente aos noivos.
Por anos eles lutaram contra aquele amor proibido, mas Querência não suportava mais o casamento com o tirano Coronel. Em uma das viagens de seu marido, ela saiu para cavalgar, e como de costume José foi junto. E foi naquele dia que o inevitável aconteceu, eles entregaram-se ao fogo daquela paixão que os consumia há tantos anos, e dessa entrega nasceu o pequeno Mateus.
Mas no momento de seu nascimento, o pai e o marido dela o tiraram de seus braços, entregaram-no ao José, que já era liberto, deram-lhe um bom tanto em dinheiro e o mandaram sumir para sempre.
Inácio houve toda aquela história com os olhos queimando de tanto rancor, ao final olha com desprezo àqueles três personagens e sem dizer uma única palavra retira-se daquela casa.
Querência sem muito saber o que fazer, abraça o filho, pede perdão a ele e pergunta a José o porquê daquele anúncio, o porquê de querer vender o filho.
Só então José teve chance de explicar:
- Você sempre foi e continuará sendo por toda a eternidade o grande amor da minha vida. E como eu estava proibido de pisar naquela casa novamente, assim que cheguei à cidade, coloquei o anúncio, porque sabia que ao ler, você viria até aqui.
Ela se despede dos dois, toma sua carruagem e parte em direção à sua casa. Assim que chega depara-se com seus cinco filhos a sua espera. Repete a eles toda a história que Inácio acabara de ouvir, mas nenhum deles faz um único gesto de solidariedade. Como que se não tivesse mais forças, Querência desaba no pomposo sofá de sua sala e fita os filhos, procurando em algum lugar dentro deles o amor que imaginara que existia.
Eles se entreolharam, e em um único coro fuzilaram-na com uma pergunta que estava os deixando atordoados:
- Assim que a senhora morrer nós teremos que dividir nossa herança com aquele negrinho bastardo?
Querência nem se dignou ao trabalho de responder, simplesmente levantou-se, dirigiu-se aos fundos da casa e deu uma ordem ao cocheiro que saiu em disparada com a carruagem.
Três quartos de horas depois ele volta, ela levanta-se, vai até a porta da sala e abre os braços para aqueles dois negros que a olhavam com ar curioso.
- Vocês aceitam recuperar o tempo perdido? Vocês me aceitam?
Pai e filho se olham e correm para abraçá-la.
Dona Querência então volta a encarar os cinco filhos, mas dessa vez com uma força que nunca tinha tido, com uma felicidade radiante em seus olhos negros. Ela os olha seriamente e diz:
- Meus filhos, este é seu irmão e este outro homem é meu grande amor. Vocês não terão que dividir sua herança com o Mateus. Vocês terão que dividir sua herança, sua casa e sua Mãe. E assim será!
Essa simpática mulher ficara viúva muito cedo, tendo que cuidar de seus cinco filhos sozinha. As finanças da família não a preocupavam, mas não era nada fácil ser sozinha, rica e viúva, com filhos para educar em meados do século XIX.
Sua vida corria tranquilamente até o dia em que Inácio, seu primogênito, entra pela cozinha com o jornal em uma das mãos lendo o tal anúncio:
- EXCELENTE ESCRAVO: vende-se crioulo de 22 anos, sem vício e muito fiel, bom e asseado cozinheiro, copeiro, bolieiro. Faz todo serviço de arranjo de casa com presteza, e é o melhor trabalhador de raça que se pode desejar: humilde, obediente e boa figura. Para tratar na ladeira de São Francisco nº 4.
Como tendo sofrido uma punhalada em seu coração Querência ficou estática ao ouvir o endereço de onde era para tratar da compra do tal escravo. Inácio não entendendo nada se assusta com a palidez da mãe e grita pela irmã que estava bordando na sala:
- Margarida… Margarida… Corra que Mamãe está passando mal!
Margarida corre apavorada até a cozinha, onde encontra sua Mãe desfalecida nos braços do irmão.
- Inácio o que aconteceu com nossa Mãe? Ela está morta?
- Claro que não menina. Mamãe está apenas desmaiada, ajude-me.
Aos poucos Dona Querência recobra a consciência e volta a corar as fartas bochechas de um rosa ainda tímido. Abre os olhos e depara-se com o olhar assustado de Inácio, Margarida e Leonel, o caçula da família, que chegara da escola.
- Mamãe o que houve com a senhora? pergunta Leonel.
- Nada meu querido, são coisas da idade. Tive apenas um mal estar, mas já estou me sentindo bem.
Começam os preparativos para o almoço, Margarida ajuda na arrumação da mesa enquanto sua Mãe dá as últimas ordens à escrava. Finalmente chegam Pedro e Miguel. Sentam-se todos, fazem a oração costumeira e servem-se com as delícias postas a mesa.
Mediante tamanha confusão Inácio esquecera-se do anúncio, até que toca no assunto, o que faz com que Querência empalideça novamente. Passado alguns instantes ele insiste dizendo que irá ver o escravo logo após o almoço.
Em um impulso, misto de cólera e desespero, Dona Querência fala quase aos berros:
- Eu o proíbo! Está entendendo Inácio? Eu o proíbo de chegar perto desse negro. Você que não se atreva!
Levantou da mesa em seguida, deixando apenas o silêncio e a troca de olhares entre os filhos, que definitivamente não entenderam nada.
Assim que percebeu a casa tomada pela calma vespertina habitual, Querência saiu do quarto, dirigiu-se para a parte de trás da casa e foi de encontro ao cocheiro:
- Apronte imediatamente a carruagem que nós vamos sair.
Em minutos sairam em disparada da imponente casa, dirigindo-se para a ladeira de São Francisco nº 4.
Chegando a frente da modesta casa, ela desce da carruagem e dá três batidas na porta. Um senhor vem atendê-la e fica atônito ao ver a imagem daquela dama, que há tantos anos não o procurava.
- Como pôde José? Como você tem coragem de colocar seu filho a venda? Você não se recorda em como é terrível ser escravo? Você não se lembra do quanto sofreu antes que meu pai o libertasse? Pelo amor de Deus. Não faça isso. O que você quer? Por que voltou? Não foi o suficiente o que foi dado a você para cuidar de nosso filho?
Antes mesmo que José pudesse dizer qualquer palavra, surge de um canto sombrio da sala um vulto que para ela fora mais assustador do que a imagem de um fantasma. Inácio aproxima-se. Olha em seus olhos com um olhar de ódio. Suspira. E toma coragem para lhe perguntar o que desejava ser um engano.
- Nosso filho? De onde a senhora conhece esse negro? De que filho a senhora está falando? O que está fazendo aqui?
Querência abaixa a cabeça, levanta os olhos, procura desesperadamente por uma ajuda, procura os olhos de José, procura por aquele bebê que vira apenas uma vez.
Eis que surge na sala em meio a esta tempestade, um bonito rapaz negro, corpo atlético, altivo, com lindos olhos. Sim, era ele o filho que lhe fora tirado dos braços ainda no primeiro minuto. Era ele o fruto do grande amor que houvera entre Querência e José, amor este despontado desde a infância, já que José nascera na fazenda dos pais de Querência, e por quase toda sua vida fora escravo daquela família. Mas quando ela contraiu matrimônio com o poderoso Coronel Pacheco, seu pai mandou José como presente aos noivos.
Por anos eles lutaram contra aquele amor proibido, mas Querência não suportava mais o casamento com o tirano Coronel. Em uma das viagens de seu marido, ela saiu para cavalgar, e como de costume José foi junto. E foi naquele dia que o inevitável aconteceu, eles entregaram-se ao fogo daquela paixão que os consumia há tantos anos, e dessa entrega nasceu o pequeno Mateus.
Mas no momento de seu nascimento, o pai e o marido dela o tiraram de seus braços, entregaram-no ao José, que já era liberto, deram-lhe um bom tanto em dinheiro e o mandaram sumir para sempre.
Inácio houve toda aquela história com os olhos queimando de tanto rancor, ao final olha com desprezo àqueles três personagens e sem dizer uma única palavra retira-se daquela casa.
Querência sem muito saber o que fazer, abraça o filho, pede perdão a ele e pergunta a José o porquê daquele anúncio, o porquê de querer vender o filho.
Só então José teve chance de explicar:
- Você sempre foi e continuará sendo por toda a eternidade o grande amor da minha vida. E como eu estava proibido de pisar naquela casa novamente, assim que cheguei à cidade, coloquei o anúncio, porque sabia que ao ler, você viria até aqui.
Ela se despede dos dois, toma sua carruagem e parte em direção à sua casa. Assim que chega depara-se com seus cinco filhos a sua espera. Repete a eles toda a história que Inácio acabara de ouvir, mas nenhum deles faz um único gesto de solidariedade. Como que se não tivesse mais forças, Querência desaba no pomposo sofá de sua sala e fita os filhos, procurando em algum lugar dentro deles o amor que imaginara que existia.
Eles se entreolharam, e em um único coro fuzilaram-na com uma pergunta que estava os deixando atordoados:
- Assim que a senhora morrer nós teremos que dividir nossa herança com aquele negrinho bastardo?
Querência nem se dignou ao trabalho de responder, simplesmente levantou-se, dirigiu-se aos fundos da casa e deu uma ordem ao cocheiro que saiu em disparada com a carruagem.
Três quartos de horas depois ele volta, ela levanta-se, vai até a porta da sala e abre os braços para aqueles dois negros que a olhavam com ar curioso.
- Vocês aceitam recuperar o tempo perdido? Vocês me aceitam?
Pai e filho se olham e correm para abraçá-la.
Dona Querência então volta a encarar os cinco filhos, mas dessa vez com uma força que nunca tinha tido, com uma felicidade radiante em seus olhos negros. Ela os olha seriamente e diz:
- Meus filhos, este é seu irmão e este outro homem é meu grande amor. Vocês não terão que dividir sua herança com o Mateus. Vocês terão que dividir sua herança, sua casa e sua Mãe. E assim será!
Nenhum comentário:
Postar um comentário